20090724

EIS QUE SURGIRA O MITO


Primeiro veio o sobrenatural. O sobrenatural, um além do natural, um mais-que-natureza, pois sobre o que se conhece. Porque sobre a natureza do próprio ser humano. Este sobrenatural como carência ao homem primitivo e ao ser contemporâneo. Esta é a necessidade de todas as crenças – ouvir sobre o além do natural: o sobrenatural. Este sobrenatural de que me expresso é o surgimento do mito.

Uma surpresa ao mundo: eis que surgira o mito. As culturas urbanas são carentes de personagens sobrenaturais, de heróis, de mitos. Uma espécie de sacralidade. Eu escrevo para questionar e dialogar com esses complexos meios de se construírem e de se desconstruírem culturas urbanas nos séculos XX e XXI – este é o olhar de quem escreve sobre mitos que alimentam cidades contemporâneas. De que carecem as cidades? “All you need is love” (The Beatles). Sempre haverá uma necessidade para se criar novos mitos, para se crer em antigos mitos.

Atravessavam o que antes, na origem dos tempos da cidade, o espaço era apenas uma clareira no meio da selva? Quando ainda não existia o nada já existia o mito. Naquela clareira havia algo de misterioso, de conflitos, de religião, de um querer ser. Os primeiros habitantes da clareira em meio à floresta buscavam o que senão um pouco de si mesmo? Eles queriam construir a história de suas vidas. Por isto experimentaram e construíram.

Aquelas famílias, aos seus modos, caracterizaram os seus mitos. Pois falavam de épocas primordiais, quando chegaram na clareira e tiveram que começar da estaca zero. Limpar, plantar, colher. Fazer da floresta de árvores e feras uma outra nova floresta de concreto armado e vidro, e re-habilitá-la com novas feras. Os seus primitivos fizeram deuses dos mistérios naturais, ouviram a resposta de suas indagações no barulho das tempestades, viram árvores centenárias deitarem-se para dar passagem ao novo mundo que tinha pressa. De seus versos criaram hinos, narraram os fatos dos quais ouviram ser contados em volta à fogueira. Estava nascendo um mundo fabuloso.

No início da agricultura, os agricultores consideraram aquela clareira como um novo paraíso. Era um lugar cheio de bondade e frescor. Tudo era possível e estava ao alcance de ser pego com as próprias mãos sem tirar os pés do solo. Os dias eram longos e agradáveis. Todas as colheitas preenchiam as necessidades. E o outro estava tão próximo chegava a seu um eu. Na Era Agrícola, a clareira foi aberta para dela nascer cidade. A morte quase não se ouvia falar, porque existia muita vida, vida em todas as partes. Como nem todos os agricultores foram bons agricultores – Natureza os castigou pedindo a ajuda de Climas Furiosos os quais vieram com Ventos Fora de Hora, com Chuvas Persistentes e Alagadiças, com Sóis de Calores Inclementes e Demorados. Era o mito sobre a existência. Aquele mundo dos agricultores desaparecera e veio outro tempo, um tempo diferente. A clareira crescia, crescia a cidade dentro da clareira.

Na clareira chegou o tempo das transformações e das transições. Após muitas vidas chegarem e muitas vidas partirem. Após mortes, nascimentos, casamentos e todas as outras crônicas urbanas, os habitantes se encontraram novamente humanos. Estes novos homens da clareira se julgaram e foram em busca de uma ética e moral para o dia-a-dia. As mulheres disseram aos seus homens o que deveria ser tabu. Os novos religiosos reescreveram os dogmas de pecado e perdão e quais os rituais a serem obedecidos. As crianças da clareira reinventaram outras atividades lúdicas e educacionais. Os idosos reuniram todos no lugar da televisão e foram lhes contar histórias para que se acalmasse em cada um a memória confusa. Os músicos sentaram-se para compor.

Os políticos se apresentaram à comunidade com elucubrações fantasiosas sobre a realidade na clareira. Construíram sonhos e destruíram utopias. Foi assim que o inconsciente coletivo do povo da clareira se formou. Ouvindo e ruminando o que se ouvia. Quando chegava a noite eles caminhavam por entre prédios como andaram os primitivos entre árvores. Carros zumbiam por entre ruas onde antes foram apenas veredas da fauna local. Esta foi à base da psique dos moradores da clareira. Estes eram os seus símbolos e a sua cultura. E nesta vida se formaram os fenômenos afetivos e sociais. Porque desta maneira eles descobriam meios de amenizar o sofrimento cotidiano em busca de um viver saudável.

Esta é a explicação do Mito da Clareira. A explicação da surpresa do mundo ao ser apresentado ao mito. E o ser humano mais crível, mais eloquente, mais sortudo fazia, no silêncio de sua oficina, o mito bem forjado. E a coletividade vê, escuta e fala a frase mágica: “Eu acredito”. E o ser crível, eloquente e sortudo vai organizando o mito com permissões, castigos e explicações, vai explicando o mito com fabulosos contos e impressionantes fatos de fantásticos acontecimentos cujo tempo se encarregou em apagar da memória, e o ser crível, eloquente e sortudo vai compensando o mito com narrativas que justifiquem os registros dos cronistas. Assim, a pessoa mais crível, mais eloquente e mais sortuda da clareira vai com suas metáforas, metaforizando um pouco aqui, um pouco ali, um pouco lá, um pouco aí. Ó como tem sorte esse cara! Diria. Não importava se fossem irracionais ou absurdos os contos que explicavam a origem de tudo; afinal, Ó como tem sorte esse cara! Era só isto o que se ouvia na cidade dentro da floresta ou a floresta dentro da cidade. Todos na cidade sabiam que após o mito ninguém mais seria entregue aos braços frios, opressivos e deprimentes da solidão. E só era, agora, olhar para cima e gritar: Não estamos mais sós no universo! Nós temos o mito e a ele somos favoráveis.